Limão Matutino

Quarta safra

29.11.06

Regras da atração


Os Infiltrados, de Martin Scorsese
Vôo 93, de Paul Greengrass

O novo filme do Scorsese, Os Infiltrados, é bom demais. E espetáculo à parte é a montagem da tia Thelma Schoonmaker, que não fosse uma senhora à beira de seus 70 anos poderia passar por qualquer maluca da nova geração. O que ela faz é moderno pra caramba, e talvez Cassino, de 1995, seja sua obra-prima. Claro, tem Touro Indomável, que precisaria de revisão pra requerer a coroa.

Mas eu to falando disso porque eu tento lembrar da melhor coisa de Os Infiltrados, e citar Leonardo DiCaprio ou Jack Nicholson nunca parece bom o bastante. A montagem do filme é a atração, e ando divagando sobre o vigor narrativo dos filmes do Scorsese: seriam mérito do grande gênio ou da montagem grandiosa da tia Thelma? E a segunda opção sempre me parece mais coerente, já que é dificílimo repetir um filme do Scorsese sem cansar. São longas sempre complicados e prolíficos em informação. Talvez por isso A Época da Inocência seja meu preferido (por parecer mais fluído, simples, agradável).

Então a montagem de Thelma Schoonmaker não seria, também pra mim, deficiente, já que não sustenta uma revisada fílmica como o mesmo vigor da primeira vez?... hmmmm, prefiro achar que não. Aquela seqüência toda com Gimme Shelter e o Jack na penumbra é tão genial, tão isoladamente espetacular, que me faz ser leviano: Os Infiltrados, mais que um legítimo Scorsese, é uma obra de Thelma Schoonmaker, e ela devia cobrar co-autoria.

E ando assim, tão deslumbrado com a arte desses gentis montadores de filmes, que continuo não vendo grandes qualidades, a não ser a edição criativa, em outro importante exemplar da safra 2006: Vôo 93 (ou Vôo United 93, embora eu prefira usar a primeira alternativa). Já que está tão em evidência falar e especular sobre a vida profissional dos controladores de vôo, este filme do Paul Greengrass é pedra importante pra explicar o caos que reina nesse tipo de função.

Aquém da agilidade, da aflição crescente e da falta de investigações patrióticas dos atentados ao World Trade Center, Vôo 93 parece melhor que o filme do Oliver Stone, mas ainda assim permanece desimportante. Talvez tenha sido cedo pra mexer com o molho: este aqui saiu seco; o outro, azedo.

7.11.06

Os idiotas


A Concepção, de José Eduardo Belmonte

É incrível como se faz cinema irresponsável no Brasil. Este A Concepção tem um chamariz do caralho, parece feito por uma turma com muita vontade e pouca capacidade de ousar. É quase uma versão brasiliense de Os Idiotas, de Lars Von Trier – também um filme irresponsável, mas tão ciente de sua irresponsabilidade que estimula a mais sincera das reflexões. Os dois filmes têm propostas semelhantes, com resultados opostos.

A Concepção se encaixa em todos os parâmetros de modernidade cinematográfica nacional, e é ainda um primo-irmão do incrivelmente ridículo Cama de Gato (que era uma espécie de correspondente ao movimento Dogma de Von Trier). A diferença está na "crueza com filtros de lente". Cria-se aqui, no filme, um tal movimento concepcionista que justifica nudez frontal e gritaria, com grande atenção à imagem e ao som e pouquíssimo cuidado com os personagens, alguns entregues a atores visivelmente despreparados.

De olhos bem abertos, A Concepção é a celebração do ego de alguém que se acha moderno o bastante pra remar contra a maré. Choca. Infelizmente pelos motivos errados. Deve se tornar o "filme-de-cabeceira" de muitos que querem uma justificativa artística para sua própria porra-louquice. Ou para exorcizar sua caretice, porque isso daqui, de tão pretensamente histérico, chega no limite do cafona.

Tudo sobre minha mãe


Em Segredo, de Jasmila Zbanic

Taí um filme que não traz nada de novo, mas que cumpre com louvor a missão de contar uma história como microcosmo de uma realidade que, muitas vezes, pouco podemos entender em fragmentos de imagens televisionadas. O batismo nacional, Em Segredo, infelizmente condiciona a vontade do espectador, que fica esperando uma grande revelação que nem chega a ser o grande soco da história.

A Bósnia é retratada por mãe e filha num cotidiano bastante comum: escola, emprego, passeios no shopping. Sublinhado pela guerra e pela perda dos entes queridos. Tem um sabor de descoberta para a menina Sara (excelente atriz, Luna Mijovic) e sacrifício para sua mãe, que parece viver para proteger sua cria e dar-lhe do bom e do melhor que um país economicamente destruído possa proporcionar.

Não é um olhar agudo e crítico, embora, claro, o pano de fundo político esteja ali, ditando quase todas as regras. A história é fincada no drama familiar, acompanhado com interesse ainda maior se não ficar esperando que o tal do "segredo" transforme um filme bonito naquele que ganhou Berlim ano passado.

A morte lhe cai bem


O Tempo Que Resta, de François Ozon

Tendo apenas 8 Mulheres e Swimming Pool como referência do cinema que Ozon faz, O Tempo Que Resta seria o filho bastardo, o trabalho atípico. Mas o que este filme simples fez foi instigar minha curiosidade quanto a Sob Areia, o que seria a primeira parte de uma trilogia sobre a morte.

De cara a trivialidade dá o tom. Afinal o cara descobre ter um câncer avançado, e se vê obrigado a sobreviver com as poucas chances de cura. Escolhe a morte, como muitos outros já o fizeram no cinema, e tem o tempo desde então dedicado a redescobrir pequenas coisas da vida, como a família. Mas Romain, o protagonista, não o faz. Decide ser mais egoísta que de costume. Claro que alguma coisa lhe toca, mas cada um foge de sua realidade como pode.

Talvez, antes de O Tempo Que Resta, o único filme que tenha brincado de forma diferente com a morte iminente tenha sido E Sua Mãe Também (que tem tema distinto, mas toca no assunto de forma calada e excepcional). As decisões de Romain são nós na garganta, e talvez aí esteja a similaridade com os filmes mais famosos de François Ozon: suas personagens não possuem meias-verdades, e nadam em águas rasas. A diferença é que desta vez ele fez um pequeno e cruel poema de imagens.

A sogra


Terapia do Amor, de Ben Younger

Já é a segunda vez em menos de um ano que uma comédia romântica se resolve de forma bastante adulta e real. Terapia do Amor, de 2005, não chega a ser tão especial quanto Separados Pelo Casamento, de 2006. Mas é mais do mesmo com um temperinho diferente. E, tal e qual O Diabo Veste Prada, traz uma atriz querida e geralmente subaproveitada (Uma Thurman) em duelo franco com Meryl Streep.

O filme se resolve quase que completamente nos instantes em que as duas dividem a tela. Uma como uma mulher "quase quarentona" recém-divorciada descobrindo os prazeres do namorado bem mais jovem e Meryl como a terapeuta dela – e mãe judia inflexível do rapaz. No resto do tempo, tem o feijão-com-arroz das indas e vindas e dos problemas decorrentes de um casal que se ama, com cerca vinte anos de abismo no meio.

Agradável e inofensivo, do jeito que deve ser. Não faz tanto barulho mas merece um voto, nem que seja pelo retorno da verve cômica de Meryl Streep, que é tão espetacular quanto seu lado dramático.

Tarja preta


Obrigado Por Fumar, de Jason Reitman

Canalha. Da trilha-sonora à atuação de Aaron Eckhart, como lobista da indústria tabagista. Obrigado Por Fumar, com direção e roteiro cínicos, é de fato uma obra-prima do humor negro. Afiado como poucos, pode ser facilmente apontado como um dos grandes filmes de 2006. E quem diria que, um dia, o marido de Julia Roberts em Erin Brockovich seria digno de conversa?

O momento é todo dele, que além de Dália Negra brilha e faz o diabo num filme que analisa a capacidade da indústria em esconder os males do cigarro – e das armas e bebidas, em mesa-redonda de mensageiros do apocalipse (um deles vivido por Maria Bello, a atual mãe zelosa do cinema americano, em filmes tão distintos quanto Marcas da Violência e As Torres Gêmeas). São alegorias humanas, anti-heróis tão simpáticos e razoáveis que merecem um pão-doce. Nick Naylor, o tal do tabaco, chega ao ponto de mostrar, in loco, ao filho (o ótimo Cameron Bright) como e em quê trabalha. E o garoto também tem seu percentual apurado de cinismo, principalmente em discussões com a mãe.

Obrigado Por Fumar é tão sensacional que nem Katie Holmes consegue estragar. Ela, com sua eterna cara de criança e sempre inadequada (aqui como uma "insinuante" jornalista) deve ter se beneficiado, mais que qualquer outro, da boa mão estreante de Jason Reitman – filho do Ivan Reitman, diretor de Os Caça-Fantasmas.

Bonequinha de luxo


O Diabo Veste Prada, de David Frankel

Que esse mundo das roupas muito caras, das modelos finas feito palito e dos egos inflados seja irremediavelmente raso, okey. Se nem mesmo Robert Altman e sua profusão de personagens conseguiu ser relevante, que dirá David Frankel, que veio de Sex and the City. E se, apesar da bela grife, O Diabo Veste Prada não foge das tantas historinhas de cinderelas e lindas mulheres, tem o que faz a grande diferença: elenco simpático e afiado.

Claro que qualquer coisa que estampe o nome de Anne Hathaway, até o momento, vale a pena. A moça tem carisma pra sustentar qualquer bobagem, e é quase uma honra tê-la enfeitando a tela (beleza, aqui, no naipe de Penélope Cruz, sem o clichê latino). E além disso, com talento pra duelar com Meryl Streep, sempre grande, mas fazendo diferente pela primeira vez desde Adaptação. Tem também Emily Blunt, de Meu Amor de Verão, que parece ter muito futuro.

De resto? É adaptado de best-seller baseado em experiências reais, tem soluções fáceis, Madonna na trilha-sonora, muito merchandising e um patinho feio que se recusa a ser um cisne pau-mandado. É mais do mesmo, mas pode parecer diferente – dependendo, creio, do humor de cada um. Eu achei um barato, ri demais e me dei por satisfeito. Será que os fúteis são mais felizes? Já pensei nisso...