Limão Matutino

Quarta safra

26.9.06

Coisas belas e sujas


A Criança, de Jean-Pierre e Luc Dardenne

O Bruno de Jérémie Renier em A Criança é um dos personagens mais desagradáveis a surgir no cinema em bastante tempo (pra mim, desde o Harvey Pekar do Paul Giamatti em Anti-Herói Americano, mas por motivos diferentes). Claro que, sob o foco dos irmãos Dardenne, ele fica aquém de julgamento explícito. Não é um filme-denúncia, não tenta justificar nada – é a moda da arte. O que não quer dizer que sirva pra transformar o longa, Palma de Ouro em Cannes ano passado, num grande achado.

Sem dúvida é cinema dos mais envolventes. Os Dardenne nos fazem acompanhar com interesse quase mórbido (e compartilhado) aquela criança recém-nascida nas mãos de pais tão imbecis. A moça, até tem o instinto materno e toda aquela gama de sentimentos bonitos, mas num ato de extrema estupidez entrega o filho ao pai, ladrão e malandro, que não hesita em vender a cria para o mercado negro de adoções ("achei que podíamos fazer outro", é a desculpa tão previsível quanto desconcertante).

Então vamos descobrindo que a criança do título não é o pequeno Jimmy, mas o tal do Bruno, que passa o filme inteiro com a mesma roupa nojenta, trocando mercadoria roubada por desejos mundanos e enfiando, literalmente, o pé na lama. Ele até apanha na cara e passa fome, antes da redenção que vem com a culpa assumida e um belo banho. Já não era sem tempo!

11.9.06

Mostrando o pau


Serpentes a Bordo, de David R. Ellis

Não é surpresa nem demonstração de atitude descer o verbo pra elogiar Serpentes a Bordo, com o hype do tamanho que está. Mas, que me joguem de um prédio bem alto, eu até adoraria pensar o contrário e dizer que é tudo muito ruim e que esse povo é louco, ou que a glorificação do lixo é reflexo de tantos ícones recentes fracassados (me vem à mente o Superman de Bryan Singer, embora cresça bastante na memória). E eu poderia ter saído de casa pra ver Miami Vice, ou o novo filme do Cacá Diegues, com alguns conhecidos no elenco. Mas eu sabia que o domingo tinha que ser do Samuel L. Jackson. Sentia o cheiro da diversão, e meu nariz não me enganou.

Serpentes a Bordo é, sim, um dos melhores filmes do ano, e ri de si mesmo como talvez nenhum outro antes. Como thriller, é tão trivial quanto Velocidade Máxima. Mas as cobras à solta, vitimando passageiros e tripulação, é um espetáculo raro de humor negro e falta de sutileza. Que fique claro que não é o caso de filme que, de tão ruim, acaba sendo bom: é over assumido, desde que o avião entra em cena, e não tem a menor vergonha de desequilibrar dramalhão de filme-catástrofe (com finalzinho feliz) e podreira de primeiríssima linha.

Serpentes a Bordo também é dono dos personagens mais doidos e das mortes mais criativas desde o primeiro Premonição (David R. Ellis, curiosamente, foi diretor da parte 2). De gente famosa, além de Samuel L. Jackson (o melhor ator do ano?), tem a Julianna Margulies, incrivelmente bonitinha e parecida com a Linda Fiorentino. A seqüência em que são dadas as instruções de vôo (cintos, máscaras de oxigênio, botes salva-vidas...) é uma delícia, com montagem bacaninha, refresco para a carnificina iminente que começa com uma cena de sexo. Daí pra frente, é um orgasmo danado!

6.9.06

Rabo de saia


Apenas Um Beijo, de Ken Loach

O egoísmo de Roisin Hanlon é a síntese do "amor ocidental". Ama-se por conveniência, por querer; somos todos livres para amar, e também para livrar-se dele usando os conceitos da mesma liberdade. E a liberdade de Roisin é também tolhida por seu espaço católico, por sua inadequação de valores morais ditados por alguém com mais poder.

Mas Roisin permanece egoísta em seu amor, que afeta a vida de outras pessoas. Tradição versus quebra de tabus para o namorado de origem árabe, Casim Khan, moderninho, porém preso ao seu próprio ciclo existencial. De um lado, a vontade de viver um romance com uma mulher branca; do outro, a desgraça iminente da família a partir de seus atos.

No que Casim luta pelo que sente, luta também para que a egoísta Roisin perceba que o "amor pra sempre" que ela (não) lhe promete não pode terminar nos moldes ocidentais. Há sofrimento, recalque, e de pessoas além do relacionamento do casal, muitas vezes baseado em pura chantagem emocional. A desgraça insinuada não é sequer mostrada efetivamente no filme de Ken Loach. Quando Apenas Um Beijo acaba, e o julgamento de caráter está feito (do lado de cá, diga-se), cabe a cada um perguntar: vale mesmo a pena?

Para os pais e a irmã mais velha de Casim, a pena é a morte social. Para Roisin, apenas ser feliz, nem que seja por hoje. Para Casim, é mudar-se internamente, para sempre. Quem seria o mais idiota? Tahara, a idealista filha mais nova, poderia responder com certa propriedade.

Ases


Beijos e Tiros, de Shane Black

A "praga Tarantino" parece não assombrar Beijos e Tiros. Refiro-me à onda de filmes de referência, desde que Pulp Fiction quebrou Cannes em 94, submetendo todo e qualquer filme posterior, que ousasse ser um caldeirão de referências pop, ao termo pejorativo de “sub-Tarantino”. Eu mesmo considero Buffalo 66, de Vincent Gallo, o melhor dos sub-Tarantino, por motivos que provavelmente serão derrubados com uma revisitada.

A obra-prima foi destronada por seu próprio criador e os dois Kill Bill, vindo outra onda ainda mais insuportável de explosão pop, que inclui remixes exdrúxulos de canções-tema (e o assassinato de Misirlou, a abertura de Pulp Fiction, a cargo dos Black Eyed Peas). Mas, dentro de tudo isso, onde fica o filme de Shane Black? No campo do divertimento puro e descompromissado, sem vestígio de subproduto. Shane Black, estreante, foi o cara que escreveu alguns dos Máquina Mortífera. Pra ele é gabarito; pra mim, é o mesmo que Demi Moore fazer algo que preste.

Beijos e Tiros, cheinho de pérolas pop e diálogos inúteis, é gema boa por, pelo menos, uns três motivos: 1. Robert Downey Jr. em seu melhor momento nas telas (Chaplin o caralho!); 2. o antipático Val Kilmer fazendo um detetive gay que usa I Will Survive como toque de celular; e 3. Michelle Monaghan, gata e com timing perfeito pra comédia. A história é rocambolesca, a ação, absurda. E tudo no capricho mesmo, desde a fantástica cena de abertura – que precede os fantásticos créditos iniciais. Clássico instantâneo.