Limão Matutino

Quarta safra

29.8.06

Queima!


Premonição 3, de James Wong

O primeiro era a surpresa, o segundo, o caça-níqueis. O que sobra pro terceiro? Elenco desconhecido, esquema já batido, diluído em trama inútil (os dois predecessores ainda tinham um porquê) e doses cavalares de humor involuntário. Nada poderia ser melhor. E não é mesmo.

Desta vez, tudo começa numa montanha-russa, e as personagens são quase todas desprezíveis. Dona Morte, no entanto, estava com um certo bloqueio criativo e, tirando a fantástica cena em que duas patricinhas são tostadas em câmaras de bronzeamento, tudo é meio lugar comum. Daí já se sabe: o povo vai morrendo, o vento vai batendo e tudo termina de forma escrota e violenta.

Vale dizer que Premonição 3 é bem produzido. No apuro técnico, não vai deixar ninguém reclamando que a verba foi gasta com pó. O pecado é um elenco pouco divertido, proto-atores tão metidos a sérios que rumam para lugar algum. Numa hora dessas, tenho que perguntar: por onde andará Devon Sawa?

O mundo


A Máquina, de João Falcão

Pode ser até chato dizer isso, ainda mais de cara, mas A Máquina parece um primo pobre do "padrão Globo Filmes de qualidade". É meio que um Lisbela e O Prisioneiro com sérias restrições orçamentárias. E isso me serviu como parâmetro pra ver o quanto que é bom, mesmo com a direção de arte patinada e metade do elenco de Sexo Frágil.

A história é linda! Mariana Ximenes brilha como nunca como Karina, habitante de Nordestina, fictícia – e típica – cidadezinha do Nordeste, que sonha em ir embora e tornar-se atriz. Gustavo Falcão (também perfeito) é o moço apaixonado que decide trazer o mundo para sua amada, apenas para não vê-la partindo. Entre indas e vindas, uma porção De Volta Para O Futuro e Paulo Autran como narrador e versão idosa/alternativa do apaixonado Antônio (Gustavo Falcão).

Não necessariamente despretensioso, mas absolutamente encantador pela declaração de amor que faz. A Máquina funciona também pelo sotaque bastante autêntico da dupla central (menos afetado e verborrágico do que é visto comumente nos filmes do Guel Arraes). E tem canções bem simpáticas.

28.8.06

As melhores intenções


Rent, de Chris Columbus

Em time que está ganhando, não se mexe. Chris Columbus, hábil condutor de crianças, deve ter pensado nisso quando inventou de dirigir a adaptação de Rent para o cinema. Foi certinho, reverente, e chamou na xinxa boa parte do elenco original da peça (de 10 anos atrás, diga-se). Fez um espetáculo fraco, o pior da leva de musicais, que já tinha dado o quase medíocre Fantasma da Ópera (desculpe, acho Minnie Driver fabulosa como Carlotta).

Pode-se afirmar que o tema ficou datado, mas basta lembrarmos de Hair, do Milos Forman, pra perceber que essa é uma meia-verdade. O que faltou mesmo foi a vontade de fazer um filme que não fosse teatrinho filmado. A câmera estática em vários números irrita, o elenco-rouxinol também não ajuda. Rosario Dawson, um talento, está mais perdida que mosca em aterro sanitário, e o restante até tenta empolgar, mas tropeça nos passos mal ensaiados ou na fumacinha fake saindo da boca de todo mundo.

Como musical, pra mim, nunca rende um todo péssimo, Rent tem lá suas fagulhas, o que me fez coçar o canto do olho por duas ou três vezes pensando no estrago que seria caso fosse entregue a alguém mais capacitado (mesmo que fosse um Rob Marshall e sua estética de drag-queen). Aliás, três é o número-chave: além de malogrado, Rent parece durar umas seis horas – vistas com "prazer obrigatório" num esquema "melhor de três" (e nem sei dizer qual dos atos foi o pior). Pelo menos os cartazes do filme ficaram lindos.

Falos subversivos


Junebug, de Phil Morrison

Com a maior cara de anos 80, Junebug acaba sendo uma grata surpresa. É mais um daqueles exemplares “casos de família”, e neste aqui a refinada Embeth Davidtz (ótima) se manda pros confins de lugar nenhum para a) tentar cooptar um polêmico artista autodidata-e-meio-tantã e b) conhecer a família de seu marido (Alessandro Nivola).

Gente sofisticada encontrando gente simples só pode dar numa coisa: lição de vida. E por mais que a doce Madeleine (Embeth) tente fazer a média, suas verdades de metrópole acabam soando como grandes ofensas. Menos mal que da família do amado quase ninguém pareça normal. E é no seio desse povo esquisito que surge a grávida vivida por Amy Adams, insuspeito talento de um elenco acima da média (incluir Celia Weston e Frank Hoyt Taylor, como o impagável artista maluco).

Falando pelos cotovelos, pode-se arriscar em Ashley, de bate-pronto, aquele papel de coadjuvante que cativa por ser tão insuportável. Mas Amy Adams, que um dia fez a "seqüência" de Segundas Intenções, é transcendental. Podemos ver em seus olhos a vontade desesperada de quem quer mudar, freada pela entrega a uma instituição ainda maior – no caso, a família que virá com o filho e a esperança de que isso deixe o marido grosseiro um pouco mais afável.

Não é injusto, portanto, aponta-la como o melhor de Junebug, ainda que o filme guarde mais um punhado de pequenos prazeres. Eu, particularmente, fiquei bobo com a cena dramática que corre na cama do hospital, logo após o parto. É isso que vai ficar, mais que negros pintados com rostos brancos e amigáveis, subjugando o inimigo com enormes falos. Não, Junebug não é tão comum como faz pensar o troncho batismo nacional (Retratos de Família).

25.8.06

Na moita


Caché, de Michael Haneke

Haneke brinca com o espectador desde os créditos de abertura. Condiciona a narrativa à verdade de sua câmera, ora parada, ora em movimento. Realiza intenções. Não é apenas o casal, vivido por Daniel Auteuil e Juliette Binoche, que se sente incomodado com tapes invasivos e desenhos agridoces. O "escondido" da tradução de Caché é menos o hipotético sujeito que brinca de voyeur e mais o próprio ser humano e seus esqueletos de armário.

E somos todos nós. E daí surge uma estranha identificação com um filme invariavelmente esquisito, que faz suspense sem lembrar qualquer outro no gênero. E é absurdamente mal-resolvido, o que incomoda ainda mais que um par de cenas-chave de impacto inigualável. Cenas estas que talvez fiquem como lembrança representativa de um todo, sublimando dentro e fora do fotograma aquilo que realmente pesa no estômago: fechar as janelas, tomar um comprimido e dormir, como se tudo finalmente voltasse ao normal com um paliativo extremo.

Sobra a parcialidade, no sentido da parte resolvida por um, e não por todos. E o todo de um grande filme que fatalmente resulta simples em sua vontade de chocar e perturbar, e que, por isso mesmo, já o torna digno de ser revisto e ampliado. Interessante observar que, com este aqui, o anterior A Professora de Piano pareça, finalmente, bem maior do que antes percebido.

18.8.06

Donzelas casadoiras


Orgulho e Preconceito, de Joe Wright

Filmes baseados em Jane Austen são naturalmente engraçados. Todo aquele jogo de sedução do século 19, com invariável requinte visual, é veículo fácil para a ascensão de muita atriz aspirante ao primeiro time. É o que acontece com a esquisita Keira Knightley, que conseguiu sua primeira indicação ao Oscar sem muita pretensão – ou justificativa.

Embora este novo Orgulho e Preconceito não seja o Razão e Sensibilidade de Ang Lee, Joe Wright, diretor estreante, consegue transcender o início malogrado para construir um longa agradável, de fotografia linda e elenco secundário luxuoso. Brenda Blethyn, Donald Sutherland e Judi Dench dão show, e ofuscam a não tão boa Keira e seu par romântico, o desconhecido Matthew MacFadyen.

Tal e qual seus protagonistas, Orgulho e Preconceito parece dividido em dois filmes distintos, reflexo natural de mão pesada e inexperiente. O primeiro deles, chato e reverente, não dá o tom adequado, entrega, no susto, uma mocinha esquecida no meio de quatro irmãs barulhentas e um galã com cara de comissão de frente. O segundo, infinitamente superior, revela as camadas da audaciosa Elizabeth Bennet (Keira), de seu anti-herói (MacFadyen, que termina excelente) e a delícia de acompanhar a mãe maníaca por um casamento para as filhas (Brenda Blethyn).

Com brumas, pradarias, carruagens e bailes, Orgulho e Preconceito já foi visto antes muitas vezes. Não ganha pontos por ser honesto, limpinho e não ofender ninguém, mas rende bastante numa noite chuvosa e solitária. Parece sincero, e a tal da Keira Knightley, dando um desconto, até que passa no teste da areia.

Flores partidas


Garota da Vitrine, de Anand Tucker

Poderia ser o filme cult dos sonhos. Não fez sucesso, não causou comoção, não ganhou prêmios. Repousou numa prateleira de locadora à espera de redenção e encontrou público fiel, que entendeu, aplaudiu e se comoveu. Embora esta seja uma quase realidade, que pelo menos minha verdade seja dita: Garota da Vitrine é um purgante!

Não dá pra perdoar Claire Danes, tão boa em My So Called Life, em Romeu + Julieta, até mesmo em As Horas, num pseudo-romance antipático, baranga de dar dó, como uma sonhadora (???) balconista de luvas numa loja de luxo que se apaixona por homens horríveis (não necessariamente na aparência). Ela está péssima, o figurino é de péssimo gosto e o apartamento no qual mora é uma aberração.

Mas também não dá pra perdoar Steve Martin posando de gatinho. O livro no qual isto aqui se baseia é dele, do Steve, e ele faz o par romântico de Claire Danes como se prestasse uma homenagem a ele mesmo e à grande obra que escreveu. Nauseante. São diálogos e mais diálogos paupérrimos, calcados em frases feitas ou guias de auto-ajuda que só não são piores que os de Vanilla Sky. Muito medo!

E não dá mesmo pra perdoar Jason Schwartzman e a absoluta creticine de sua personagem, head-banger mongolóide entregue a uma jornada de auto-conhecimento (???). Só ele parece estar se divertindo com tantos cacoetes. Nem mesmo em Huckabees (um bom filme) ele ousou ser tão asqueroso. É a cereja no topo do bolo, o convite perfeito ao vômito e à indignação. Diga olá para o China in Box de 10 minutos atrás!

9.8.06

A diferença


As Chaves de Casa, de Gianni Amelio

Filmes de doentes costumam não me agradar. De "clássicos" como Rain Man a recentes como I Am Sam, a subcategoria fatalmente resvala na pieguice. E quando usam doentes verdadeiros como atores, aí a coisa parece bem pior. O sentimentalismo bate forte, e a mola mestra da trama acaba sendo o aprendizado das pessoas "normais" diante do novo mundo dos seres especiais, com ares de grande campanha de conscientização.

É e não é o caso do italiano As Chaves de Casa. Há aqui a velha redenção do pai que vê o filho pela primeira vez aos 14 anos. Paolo, o pivete, anda com dificuldade e tem problemas neurológicos, que – ponto positivo – não são explicados didaticamente pelo roteiro. Simpático, falastrão e fatalmente irritante, cabe a ele ensinar ao jovem pai (Kim Rossi Stuart, que lembra Jude Law) coisas sobre a convergência de dois mundos diferentes. E isso, claro, vai gerar seqüelas.

Charlotte Rampling, que entra em cena como a mãe de uma menina muito mais especial que o espevitado Paolo, dá o tom de sobriedade. Ela, com a vida totalmente dedicada a cuidar da filha, não reclama da sorte, mas numa cena de choro especialmente bonita, deixa bem claro o quanto é difícil optar pelo certo, e o quanto é humano desejar o errado.

Quando termina, melancólico, As Chaves de Casa já deu seu recado bonito sem, no entanto, apelar para o simples e satisfatório happy ending. Tanto melhor. Gianni Amelio foi coerente com seu retrato e com sua platéia que, acredito, não ousaria atirar a primeira pedra no pai ausente de rabo entre as pernas.