Limão Matutino

Quarta safra

29.1.07

Hora de voltar


Marie-Antoinette, de Sofia Coppola

Limão Matutino com os dias contados. Morte certa pra uma criança de 4 ou 5 anos. Datas e números não são meu forte, mas foi por volta de outubro de 2002 que tomou forma a vontade de escrever sobre uma paixão tão eterna quanto o cinema. Tempos outros, e hoje percebo o quanto de tolice há em paixões fortes e intensas. A perda do olhar, do entusiasmo, o prazer de ver, curtir e comentar cinema cada vez mais sintético, formulaico. Chato pra caramba.

Decidi matar o blog pra não matar o amor pela arte. Pra empreender o retorno ao olhar mais puro direcionado ao cinema. Com crítica sempre, mas primeiro com vontade e com o mesmo prazer dos tempos de 95, início da minha "cinefilia", encantado com Martin Landau como Bela Lugosi num filme perfeito do Tim Burton, com Uma Thurman "desenhando" quadrados na tela e com essa mocinha da foto brincando de criança-adulta.

Neil Jordan me deu meia-dúzia de belos filmes. Sofia Coppola, seus três rebentos. E "dar adeus" com Marie-Antoinette, o grande filme de 2006 a ser visto em 2007, tem gosto especial. Até pecado com foto em preto-e-branco, mas vá lá que isso aqui ainda tem um "projeto gráfico" (piada interna, mesmo). Cinema imperfeito e delicioso, que prova, quase que de forma definitiva, que Sofia é uma cineasta de mão-cheia, e que não vai se entregar tão cedo. Vaiado em Cannes? Ah, que comam bolo.

O tempo de vida do Limão Matutino foi feito mais de mulheres que de homens. Naomi Watts, em Mulholland Dr., que inaugurou o blog, Scarlett Johansson, Ludivine Sagnier e Charlotte Rampling, Amy Adams, Kelly Reilly, Minnie Driver, Nicole Kidman, Julianne Moore e Toni Collette e Rachel Griffiths. Kate Winslet, Tilda Swinton (quantos filmes essa criatura ainda há de salvar?), meu derradeiro amor por Penélope Cruz, Emily Browning, Emily Blunt e Nathalie Press... Natalie Portman de cabelo rosa, sem cabelo e ao som de Frou Frou. Lucrecia Martel e Jane Campion. Sofia Coppola, ainda nos tempos de Domino. Marcélia Cartaxo, Fernanda Torres cantando "Vapor Barato" tão foda no final de Terra Estrangeira...

... o show continua, mas não por aqui. Baixando insuspeita humildade, quando tiver base verdadeira pra "criticar" cinema, farei. Por enquanto, brinco de entusiasta que solta palavrão de revolta com filme ruim do Darren Aronofsky e com cinema nacional mal-parido.

Não chamaria de senso comum. Bom senso soa melhor.

Au revoir, les enfants!

13.12.06

La madre muerta


Volver, de Pedro Almodóvar

Penélope Cruz brilha! E como nunca antes, nem mesmo em filmes de Almodóvar, apesar da célebre passagem pela abertura de Carne Trêmula. E mesmo com elenco feminino plural, Penélope está lá, iluminada, eficiente, grande atriz – adjetivos que insistiam em lhe passar longe, tamanha nojeira que vinha fazendo, sobretudo nos americanos. Dona!

Volver, que finalmente nos rende e justifica essa atriz tão esquisita, é um Almodóvar seguro. Não o melhor, mas ainda bom pedaço de um cinema bastante peculiar, feito de cores que agora servem a um enredo mais melancólico. Nada estranho à filmografia do diretor, mas diferente, que se finge baseado no sobrenatural, num primeiro momento, para depois planejar mudanças de foco.

Volver é, também, o retorno ao universo feminino forte e às personagens queridas e idiossincráticas de Almodóvar. Tem a morte como cenário investigado, em certos tons alegres. O resultado só poderia ser a delícia de sempre.

Movimento coprofágico


A Fonte da Vida, de Darren Aronofsky

Que raio de filme é esse? Cafona e indigesto até a tampa! É Aronofsky atingindo níveis incríveis de pretensão e mau-gosto. Como se diz aqui no Nordeste, quem mandou dar ousadia a esse cabra? Afe!

5.12.06

Trois couleurs


Happy Feet, de George Miller

Este simpático filme de bichos falantes lembra narrativamente Babe – O Porquinho Atrapalhado. Não por coincidência, o diretor George Miller é produtor dos dois filmes do porco pastor, e diretor/roteirista do segundo. Há empatia com a história do pingüim dançarino numa sociedade de pingüins cantores, com brechas para poesia ecológica e soluções geralmente criativas. Perde-se um pouco no final corrido, mas vale pelo conjunto, principalmente pelo inusitado (embora pareça, à primeira vista, mais do mesmo). Atenção à sinuosa Norma Jean, dublada por Nicole Kidman, e aos dotes vocais de Brittany Murphy – mesmo na versão em português, as canções permanecem com som original.



O Labirinto do Fauno, de Guillermo Del Toro

Mais violento do que se poderia supor, Del Toro faz de O Labirinto do Fauno irmão de A Espinha do Diabo. Há o pano de fundo político – a ditadura de Franco, na Espanha – sublinhado pelo imaginário infantil. No caso, a menina Ofelia, espécie de Alice em seu particularíssimo país das maravilhas, que parece criar um conto de fadas para escapar de uma realidade cruel, com o casamento da mãe grávida com um general perverso. As duas linhas se fundem de forma perfeita, e o encanto é totalmente permitido, com direção de arte e efeitos especiais de primeira. Bela atuação de Maribel Verdú (E Sua Mãe Também).



O Grande Truque, de Christopher Nolan

Nolan talvez seja um verdadeiro visionário. Seu trabalho em O Grande Truque é tão singular que nos leva a acreditar num tipo de cinema muito à frente de seu tempo – assim como o ultracultuado Memento. A encenação impressiona, o duelo entre Hugh Jackman e Christian Bale sustenta os melhores momentos da carreira de ambos. A costura da história é de uma engenhosidade invejável, de longe o melhor roteiro de 2006. Mas não custa falar mal de Scarlett Johansson, que mostra incapacidade dramática pela segunda vez seguida, logo depois de Dália Negra. É apenas um espectro da atriz encantadora de Encontros e Desencontros e Match Point. Uma pena.

29.11.06

Regras da atração


Os Infiltrados, de Martin Scorsese
Vôo 93, de Paul Greengrass

O novo filme do Scorsese, Os Infiltrados, é bom demais. E espetáculo à parte é a montagem da tia Thelma Schoonmaker, que não fosse uma senhora à beira de seus 70 anos poderia passar por qualquer maluca da nova geração. O que ela faz é moderno pra caramba, e talvez Cassino, de 1995, seja sua obra-prima. Claro, tem Touro Indomável, que precisaria de revisão pra requerer a coroa.

Mas eu to falando disso porque eu tento lembrar da melhor coisa de Os Infiltrados, e citar Leonardo DiCaprio ou Jack Nicholson nunca parece bom o bastante. A montagem do filme é a atração, e ando divagando sobre o vigor narrativo dos filmes do Scorsese: seriam mérito do grande gênio ou da montagem grandiosa da tia Thelma? E a segunda opção sempre me parece mais coerente, já que é dificílimo repetir um filme do Scorsese sem cansar. São longas sempre complicados e prolíficos em informação. Talvez por isso A Época da Inocência seja meu preferido (por parecer mais fluído, simples, agradável).

Então a montagem de Thelma Schoonmaker não seria, também pra mim, deficiente, já que não sustenta uma revisada fílmica como o mesmo vigor da primeira vez?... hmmmm, prefiro achar que não. Aquela seqüência toda com Gimme Shelter e o Jack na penumbra é tão genial, tão isoladamente espetacular, que me faz ser leviano: Os Infiltrados, mais que um legítimo Scorsese, é uma obra de Thelma Schoonmaker, e ela devia cobrar co-autoria.

E ando assim, tão deslumbrado com a arte desses gentis montadores de filmes, que continuo não vendo grandes qualidades, a não ser a edição criativa, em outro importante exemplar da safra 2006: Vôo 93 (ou Vôo United 93, embora eu prefira usar a primeira alternativa). Já que está tão em evidência falar e especular sobre a vida profissional dos controladores de vôo, este filme do Paul Greengrass é pedra importante pra explicar o caos que reina nesse tipo de função.

Aquém da agilidade, da aflição crescente e da falta de investigações patrióticas dos atentados ao World Trade Center, Vôo 93 parece melhor que o filme do Oliver Stone, mas ainda assim permanece desimportante. Talvez tenha sido cedo pra mexer com o molho: este aqui saiu seco; o outro, azedo.

7.11.06

Os idiotas


A Concepção, de José Eduardo Belmonte

É incrível como se faz cinema irresponsável no Brasil. Este A Concepção tem um chamariz do caralho, parece feito por uma turma com muita vontade e pouca capacidade de ousar. É quase uma versão brasiliense de Os Idiotas, de Lars Von Trier – também um filme irresponsável, mas tão ciente de sua irresponsabilidade que estimula a mais sincera das reflexões. Os dois filmes têm propostas semelhantes, com resultados opostos.

A Concepção se encaixa em todos os parâmetros de modernidade cinematográfica nacional, e é ainda um primo-irmão do incrivelmente ridículo Cama de Gato (que era uma espécie de correspondente ao movimento Dogma de Von Trier). A diferença está na "crueza com filtros de lente". Cria-se aqui, no filme, um tal movimento concepcionista que justifica nudez frontal e gritaria, com grande atenção à imagem e ao som e pouquíssimo cuidado com os personagens, alguns entregues a atores visivelmente despreparados.

De olhos bem abertos, A Concepção é a celebração do ego de alguém que se acha moderno o bastante pra remar contra a maré. Choca. Infelizmente pelos motivos errados. Deve se tornar o "filme-de-cabeceira" de muitos que querem uma justificativa artística para sua própria porra-louquice. Ou para exorcizar sua caretice, porque isso daqui, de tão pretensamente histérico, chega no limite do cafona.

Tudo sobre minha mãe


Em Segredo, de Jasmila Zbanic

Taí um filme que não traz nada de novo, mas que cumpre com louvor a missão de contar uma história como microcosmo de uma realidade que, muitas vezes, pouco podemos entender em fragmentos de imagens televisionadas. O batismo nacional, Em Segredo, infelizmente condiciona a vontade do espectador, que fica esperando uma grande revelação que nem chega a ser o grande soco da história.

A Bósnia é retratada por mãe e filha num cotidiano bastante comum: escola, emprego, passeios no shopping. Sublinhado pela guerra e pela perda dos entes queridos. Tem um sabor de descoberta para a menina Sara (excelente atriz, Luna Mijovic) e sacrifício para sua mãe, que parece viver para proteger sua cria e dar-lhe do bom e do melhor que um país economicamente destruído possa proporcionar.

Não é um olhar agudo e crítico, embora, claro, o pano de fundo político esteja ali, ditando quase todas as regras. A história é fincada no drama familiar, acompanhado com interesse ainda maior se não ficar esperando que o tal do "segredo" transforme um filme bonito naquele que ganhou Berlim ano passado.

A morte lhe cai bem


O Tempo Que Resta, de François Ozon

Tendo apenas 8 Mulheres e Swimming Pool como referência do cinema que Ozon faz, O Tempo Que Resta seria o filho bastardo, o trabalho atípico. Mas o que este filme simples fez foi instigar minha curiosidade quanto a Sob Areia, o que seria a primeira parte de uma trilogia sobre a morte.

De cara a trivialidade dá o tom. Afinal o cara descobre ter um câncer avançado, e se vê obrigado a sobreviver com as poucas chances de cura. Escolhe a morte, como muitos outros já o fizeram no cinema, e tem o tempo desde então dedicado a redescobrir pequenas coisas da vida, como a família. Mas Romain, o protagonista, não o faz. Decide ser mais egoísta que de costume. Claro que alguma coisa lhe toca, mas cada um foge de sua realidade como pode.

Talvez, antes de O Tempo Que Resta, o único filme que tenha brincado de forma diferente com a morte iminente tenha sido E Sua Mãe Também (que tem tema distinto, mas toca no assunto de forma calada e excepcional). As decisões de Romain são nós na garganta, e talvez aí esteja a similaridade com os filmes mais famosos de François Ozon: suas personagens não possuem meias-verdades, e nadam em águas rasas. A diferença é que desta vez ele fez um pequeno e cruel poema de imagens.

A sogra


Terapia do Amor, de Ben Younger

Já é a segunda vez em menos de um ano que uma comédia romântica se resolve de forma bastante adulta e real. Terapia do Amor, de 2005, não chega a ser tão especial quanto Separados Pelo Casamento, de 2006. Mas é mais do mesmo com um temperinho diferente. E, tal e qual O Diabo Veste Prada, traz uma atriz querida e geralmente subaproveitada (Uma Thurman) em duelo franco com Meryl Streep.

O filme se resolve quase que completamente nos instantes em que as duas dividem a tela. Uma como uma mulher "quase quarentona" recém-divorciada descobrindo os prazeres do namorado bem mais jovem e Meryl como a terapeuta dela – e mãe judia inflexível do rapaz. No resto do tempo, tem o feijão-com-arroz das indas e vindas e dos problemas decorrentes de um casal que se ama, com cerca vinte anos de abismo no meio.

Agradável e inofensivo, do jeito que deve ser. Não faz tanto barulho mas merece um voto, nem que seja pelo retorno da verve cômica de Meryl Streep, que é tão espetacular quanto seu lado dramático.

Tarja preta


Obrigado Por Fumar, de Jason Reitman

Canalha. Da trilha-sonora à atuação de Aaron Eckhart, como lobista da indústria tabagista. Obrigado Por Fumar, com direção e roteiro cínicos, é de fato uma obra-prima do humor negro. Afiado como poucos, pode ser facilmente apontado como um dos grandes filmes de 2006. E quem diria que, um dia, o marido de Julia Roberts em Erin Brockovich seria digno de conversa?

O momento é todo dele, que além de Dália Negra brilha e faz o diabo num filme que analisa a capacidade da indústria em esconder os males do cigarro – e das armas e bebidas, em mesa-redonda de mensageiros do apocalipse (um deles vivido por Maria Bello, a atual mãe zelosa do cinema americano, em filmes tão distintos quanto Marcas da Violência e As Torres Gêmeas). São alegorias humanas, anti-heróis tão simpáticos e razoáveis que merecem um pão-doce. Nick Naylor, o tal do tabaco, chega ao ponto de mostrar, in loco, ao filho (o ótimo Cameron Bright) como e em quê trabalha. E o garoto também tem seu percentual apurado de cinismo, principalmente em discussões com a mãe.

Obrigado Por Fumar é tão sensacional que nem Katie Holmes consegue estragar. Ela, com sua eterna cara de criança e sempre inadequada (aqui como uma "insinuante" jornalista) deve ter se beneficiado, mais que qualquer outro, da boa mão estreante de Jason Reitman – filho do Ivan Reitman, diretor de Os Caça-Fantasmas.

Bonequinha de luxo


O Diabo Veste Prada, de David Frankel

Que esse mundo das roupas muito caras, das modelos finas feito palito e dos egos inflados seja irremediavelmente raso, okey. Se nem mesmo Robert Altman e sua profusão de personagens conseguiu ser relevante, que dirá David Frankel, que veio de Sex and the City. E se, apesar da bela grife, O Diabo Veste Prada não foge das tantas historinhas de cinderelas e lindas mulheres, tem o que faz a grande diferença: elenco simpático e afiado.

Claro que qualquer coisa que estampe o nome de Anne Hathaway, até o momento, vale a pena. A moça tem carisma pra sustentar qualquer bobagem, e é quase uma honra tê-la enfeitando a tela (beleza, aqui, no naipe de Penélope Cruz, sem o clichê latino). E além disso, com talento pra duelar com Meryl Streep, sempre grande, mas fazendo diferente pela primeira vez desde Adaptação. Tem também Emily Blunt, de Meu Amor de Verão, que parece ter muito futuro.

De resto? É adaptado de best-seller baseado em experiências reais, tem soluções fáceis, Madonna na trilha-sonora, muito merchandising e um patinho feio que se recusa a ser um cisne pau-mandado. É mais do mesmo, mas pode parecer diferente – dependendo, creio, do humor de cada um. Eu achei um barato, ri demais e me dei por satisfeito. Será que os fúteis são mais felizes? Já pensei nisso...

28.10.06

Louca obsessão


Menina Má.com, de David Slade

O visual não nega: é filhote de videoclipeiro. No caso, David Slade, que fez Sour Girl, dos Stone Temple Pilots, e Mr. Writer, Stereophonics. Clipes lindos, filme lindo também. Tem uma estética curiosa, uso de cores primárias, filtros de lente que mudam de um corte ao outro (às vezes num fade). Mas Menina Má.com não se sustenta nisso, até porque o truque parece bastante simples e corriqueiro. Também não se ampara no roteiro, que apesar de funcionar na tensão, carrega um punhado de lugares-comuns.

Com o elenco reduzido a duas pessoas (outras três ou quatro cruzam a tela sem grande importância), a menina má do título nacional, e o "doce difícil" do título original, Ellen Page, engole a tela torturando física e psicologicamente o suspeito pedófilo Patrick Wilson. É interessante ver tanto a Kitty Pride de X-Men quanto o galã almofadinha de O Fantasma da Ópera transmutados quase milagrosamente em grandes atores, que sustentam um filme inteiro com um interessante duelo de atuações.

É justo falar que Menina Má.com resulta vazio, e há incongruências suficientes para que o fogo suma no rastro em dois tempos, como uma experiência meramente visual – e fracassada. Como filme de estréia, acho válido. Me lembrou One Hour Photo, quando Mark Romanek quis ser Stanley Kubrick. Em ambos o interesse é inegável, a culpa nem sempre assumida. E a inocência simplesmente inexiste.

O maior espetáculo da terra


As Torres Gêmeas, de Oliver Stone

Eis um filme que não serve pra nada. Nem pra ser criticado. Não tem sequer arroubos de cafonice ou patriotismo desmiolado. É historinha pra boi dormir, uma versão "intimista" dos acontecimentos de 11 de setembro, os atentados que mudaram o mundo. Já o filme não muda nada. Só mostra que o antes ousado – e até mesmo chato – Oliver Stone é capaz de fazer cinema extremamente correto.

Eu prefiro a época em que ele catava fio de cabelo em ovo. Diante de As Torres Gêmeas e sua infindável coleção de boas intenções, o pomposo e irregular Alexandre parece mesmo o grande filme que prometia. Temos, aqui, apenas a cara de pastel de Nicolas Cage e o Michael Pena, galgando mais degraus rumo ao coração norte-americano (depois de Crash, um outro atentado). Intercalando cenas embaixo dos escombros, temos Maria Bello e Maggie Gyllengaal, como as respectivas esposas-mães, e Jesus Cristo. Boas atrizes sem campo e uma visão ridícula da salvação.

Se cada filme tem que cumprir sua missão, a de As Torres Gêmeas – tornar-se um monumento, sem brechas de discussão, para todos os mortos e suas famílias destruídas – é conseguida com louvor estúpido. Cinema não foi feito pra isso, como nos mostrou o próprio Oliver Stone em dias melhores.

23.10.06

Corpos que caem


Dália Negra, de Brian De Palma

É incrível como De Palma não precisa se superar para fazer cinema acima da média. O noir em cores de James Ellroy, autor do ainda absurdo Los Angeles – Cidade Proibida, de Curtis Hanson, não ficou desamparado em mãos inábeis. Tudo em Dália Negra supõe um grande filme, que de fato acontece em muitos momentos, e não apenas pelas qualidades de produção que saltam aos olhos, da fotografia à trilha sonora luxuosa. Talvez o tom fique um pouco abaixo do esperado (este não é melhor que o anterior, Femme Fatale) mas nunca a ponto de se tornar uma decepção. O longa é elegante e costurado com a habilidade que sempre foi marca do diretor até em trabalhos mais fracos, como A Fogueira das Vaidades.

Josh Hartnett e Aaron Eckhart estão ótimos como protagonistas, apesar das contrapartes femininas não funcionarem tão a contento. Sobre Hilary Swank, ainda que seja esquisito vê-la interpretando uma fêmea fatal, o esforço é compensado com certa dignidade, e a moça consegue sobreviver ao equívoco. Pior se sai Scarlett Johansson, boa atriz que, aqui, nunca acerta o tom e transforma-se num grande ponto negativo: ora enfeite demais, ora incompetente demais.

Sendo assim, o especial da escalação fica mesmo com as coadjuvantes. E não falo apenas de Mia Kirshner e seu olhar magnético, fantástica como Elizabeth Short, a dália negra, sempre em cenas que simulam tragicômicos testes de elenco, atuando apenas com a voz de Brian De Palma. Rose McGowan faz rápida e marcante aparição, como uma atriz de quinta, e Fiona Shaw (a tia Petúnia do Harry Potter) brilha rápida e decisivamente como Ramona Linscott, a esnobe mãe da personagem de Hilary Swank.

10.10.06

Beleza roubada


A Dama Na Água, de M. Night Shyamalan

Eu odiava Sinais. Foi um filme que vi com olhos comuns, esperando exatamente aquilo que era vendido: medo, susto, efeitos especiais. Para mim, resultou chocho, um suspense que não investia alto em sua própria premissa, que se entregava a uma certa preguiça. Os ETs eram de CGI vagabundo e tinham medo de água. A trama parecia fechada em trivialidades, e Abigail Breslin, a pirralha, era chata demais.

Anos depois eu pude entender Sinais, e foi depois de A Vila. O impacto do monstro falso da falsa vila medieval me fez repensar M. Night Shyamalan como o cineasta das entrelinhas, muito mais que o das reviravoltas. E compreendi Sinais como um bom filme sobre superação de medos. E que o mais importante estava exatamente na história. Preguiça minha, portanto, de achar que o cara só podia me oferecer a sugestão da casa, quando o prato mais caro era infinitamente mais saboroso.

Talvez essa seja a mola-mestra de todos os seus filmes: o medo superado. Não o medo causado no espectador, não o medo que perturba, mas o que ensina. Há sempre uma lição a ser aprendida, e é em A Dama Na Água que isso fica ainda mais explícito. É um exercício de ingenuidade mitológica, e desta vez fiquei feliz de ter no filme exatamente o que tinha no trailer: a história de ninar, o conto de fadas. De novo, oferecido com certo sacrifício.

É um passo muito curto para o ridículo, mas de alguma forma, tudo funciona. Ter reconsiderado os ETs de Sinais e admirado a fantasia artesanal dos monstros de A Vila trabalhou significativamente pra isso. A Dama Na Água esconde beleza onde haveria apenas pretensão. E Shyamalan, o projeto de Hitchcock para os tempos modernos, é um cineasta tão genial quanto pretensioso. Paul Giamatti, ódio gratuito meu, consegue nas mãos do indiano o que nem Alexander Payne antes conseguiu: tornar-se um ator simpático. E aos pares com o talento cada vez mais estupendo de Bryce Dallas Howard.

Não faz mal que tudo em A Dama Na Água tenha sido tão malhado. Algumas (outras) obras-primas nasceram do mesmo jeito...

9.10.06

Guia do mochileiro


O Albergue, de Eli Roth

Acho que só minha vó passaria mal vendo O Albergue. Dito isto, o filme falha, já que o chamariz era justamente o poder nauseante de imagens de violência extrema. Mas, olha só: tem uma cena rápida de crânio esmagado que perde feio para o início/fim de Irreversível (sendo este apenas um dos muitos momentos revoltantes do filme de Gaspar Noé).

Por outro lado, o tal do Eli Roth até que tem uma mão boa pro terror que pretende. Nem parece um filme de americano. Minto, aquele ideal do jovem pré-universitário que quer apenas trepar é tipicamente norte-americano, do Oiapoque ao Chuí (digo, de Porky's a American Pie). Então é pela cabeça de baixo (não literalmente) que os jovens mochileiros de O Albergue vão morrendo violentamente.

E eu acho importante que seja assim, mesmo que só aconteça depois de um tempão sem dizer a que veio (ou, curiosamente, instigando a vontade mochileira dentro de cada um). Infelizmente, as imagens de violência gratuita são rápidas demais. Mas a justificativa é boa. E as reações desesperadas de Kana, a coreana, são os melhores momentos do filme.

Cinema epilético


Domino – A Caçadora de Recompensas, de Tony Scott

O cara tem um filme cult (Fome de Viver). É irmão de Ridley Scott e, ao que tudo indica, quis fazer "homenagem" ao Assassinos Por Natureza, de Oliver Stone. Bom que a obra-prima de 1994 tenha feito escola. Mau que este Domino – A Caçadora de Recompensas tenha vindo pra reforçar o coro dos que reclamam da "linguagem MTV" catando espaço nos cinemas. É tanto corte, tanto efeito sonoro e tanto filtro de lente que fica cansativo. Fosse de fato um videoclipe de 3 minutos, ainda conseguiria ser insuportável.

Tony Scott nunca foi um bom diretor. Tem algo a oferecer no campo visual, é verdade – e ele mesmo já dirigiu alguns videoclipes (nenhum memorável, diga-se). Mas trabalha com gente legal, como Richard Kelly, o roteirista e responsável pelos parcos bons momentos. Era pra ser bacana, e dá pra sentir isso até uns 40 minutos. Depois enjoa.

Sobre Keira Knightley, não há o que falar. Sua falta de talento é cada vez mais explícita, mas o rostinho de anjo engana. Ela sabe fazer bico e tem dois ou três pares de olhar pra compor uma bad girl fuleira – não falando da real Domino Harvey, já que o filme, sabe-se, é "romantizado". Mas ainda não sei se gosto dessa menina...

Anjos de cara suja


Terra Fria, de Niki Caro

Raio de cinema corporativo, todo hermético. Nunca sai da linha, faz tudo por cartilha, tudo correto, mas tão correto que foge do depreciativo. Dá nem pra falar que ele é ruim! Droga. Mas Terra Fria, esse negócio sério, todo ajeitadinho com a cara supostamente sofrida de uma Charlize Theron mineradora, não tem alma. E, pasmado estou, é da mesma diretora de Encatadora de Baleias, que é um filme tão genuinamente chantagista.

Alguém poderia avisar à Charlize Theron que ela não precisa salvar o mundo nem militar por causas nobres e se tornar uma segunda Sally Field. O mundo do cinema gosta dela, e vá lá que, a despeito da bosta que é aquele Monster, ela tem talento para filmes mais interessantes e com conteúdos que sustentem duas horas de filme, e que possam dar-lhe indicação mais merecida ao Oscar. Mineradoras bonitas assediadas sexualmente não merecem 126 minutos de tela. E Frances McDormand não precisava uma personagem tão apelativa quanto a líder sindical feminina com doença degenerativa.

O que poderia ser feito então? Trocar o macacão sujo de Michelle Monaghan por um vestidinho de mamãe-noel? Fazê-las cantar a infelicidade e os sonhos difíceis no meio do maquinário? Bom, talvez um tema tão desinteressante quanto este nem merecesse virar filme. Vou esperar um pouco pra ver se aquela loirinha, que faz a Charlize adolescente, estoura em mãos mais talentosas. Se acontecer, Terra Fria terá valido a pena.

26.9.06

Coisas belas e sujas


A Criança, de Jean-Pierre e Luc Dardenne

O Bruno de Jérémie Renier em A Criança é um dos personagens mais desagradáveis a surgir no cinema em bastante tempo (pra mim, desde o Harvey Pekar do Paul Giamatti em Anti-Herói Americano, mas por motivos diferentes). Claro que, sob o foco dos irmãos Dardenne, ele fica aquém de julgamento explícito. Não é um filme-denúncia, não tenta justificar nada – é a moda da arte. O que não quer dizer que sirva pra transformar o longa, Palma de Ouro em Cannes ano passado, num grande achado.

Sem dúvida é cinema dos mais envolventes. Os Dardenne nos fazem acompanhar com interesse quase mórbido (e compartilhado) aquela criança recém-nascida nas mãos de pais tão imbecis. A moça, até tem o instinto materno e toda aquela gama de sentimentos bonitos, mas num ato de extrema estupidez entrega o filho ao pai, ladrão e malandro, que não hesita em vender a cria para o mercado negro de adoções ("achei que podíamos fazer outro", é a desculpa tão previsível quanto desconcertante).

Então vamos descobrindo que a criança do título não é o pequeno Jimmy, mas o tal do Bruno, que passa o filme inteiro com a mesma roupa nojenta, trocando mercadoria roubada por desejos mundanos e enfiando, literalmente, o pé na lama. Ele até apanha na cara e passa fome, antes da redenção que vem com a culpa assumida e um belo banho. Já não era sem tempo!